domingo, 3 de março de 2013

O Mar dos Açores por João de Melo

Do cimo da ilha da minha infância, via-se o mar: não era plano nem azul, nem tão parado como agora; e não tinha, nas sempre breves e chuvosas tardes de Inverno, a cor plúmbea com que por vezes se assemelha ao aço das lâminas de barba. O meu era um mar branco e oblíquo, e subia das pedras negras da costa até às faldas que ficavam no limite extremo do firmamento. Para se sair da ilha, era necessário trepar pelas águas acima, como numa ascensão; para a ela regressar, devia descer-se na perpendicular de um eixo marítimo e terrestre. Havia, nessa forma peculiar de ver a geografia que então me cercava, não uma ilusão de óptica, mas antes uma presciência poética que parecia já anunciar-me um “desejo” de literatura.

Muito revolto se me afigurava o mar, e furiosamente picado pela mordedura de umas cobras marinhas a que chamávamos moreias; branco da sua própria braveza, tanto quanto da saliva delas. Fora-me proibido ir conhecê-lo de perto, apesar de lhe morar bem à vista e de ser em mim grande a ansiedade de escutar os seus passos de animal acorrentado e de provar o sal dos seus segredos. De modo que, quando tal finalmente aconteceu, foi-me muito elementar vivê-lo à margem dos sentidos - com a arte do sonho e com aquela virtude que dá pelo nome de «imaginação».
Passavam ao largo grandes e luxuosos navios brancos - com as fumegantes chaminés amarelas e os pavilhões enfunados pelo vento. Levavam os tombadilhos cheios de pessoas invisíveis - supondo eu ver cabeças minúsculas no convés e mãozinhas com lenços a acenar, em despedida. Acreditava até que ouvia os prantos e os suspiros dessa gente feliz com lágrimas que ia sempre em direcção à América.

Uma vez por outra, correspondia aos seus acenos, sentado na terra e no tempo da minha infância. Ficava, horas sem fim, a ver extinguirem-se os navios, perdendo-se ao longe ou entrando pelo céu dentro, lá onde findava o mar da minha vista: devia haver ao alto uma qualquer passagem secreta para o Paraíso, quem sabe se uma porta para o coração do universo.
Um dia, aconteceu-me também a mim subir ao convés de um navio, vogar à bolina, ver a ilha ficar para trás, cada vez mais longe, mais parada na distância, até se extinguir. No meu espírito, porém, ela crescia na razão inversa desse afastamento físico - o bastante para a reter em mim pela sua existência tangível e pelo imaginário da literatura. E então eu vi quanto se iludira a minha infância na ilha: afinal o mar nada tinha de oblíquo nem de redondo; tão-pouco era branco como a saliva das tais serpentes marinhas. E também, ao contrário do que supunha, não se colava ao firmamento na linha do horizonte. Nem era infinito. Tratava-se de mar plano, equidistante a tudo. Visto do alto dos navios, parecia até não ser um caminho de ida nem regresso a casa. A verdade é esta: no fim de todos os mares e oceanos, pode haver uma ilha muito grande à qual nós chamamos “continente”; ou haver uma porção de terra rodeada de mar - e ser ela apenas uma ilha-ilha-continente como outra qualquer. Porque tudo o que somos e sonhamos vem no mapa. E até os mapas existem para serem, como nós, espírito e obra da nossa alma.

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