“Que por todos se faça a poesia",
primeiro verso do “Primeiro Poema de Madrid” do livro Transporte no Tempo,
seria o mote para uma sessão sobre a poesia do grande Poeta Ruy Belo no dia 15
de maio de 2013 e que teria como convidada de honra a Dr.ª Maria Teresa Marques
Belo, a sua “única viúva”- um encontro proporcionado pela Vereadora da Educação
e Cultura de Rio Maior, Dr.ª Sara Fragoso.
Dado o avançado da hora, a ideia
comum mas que ninguém ousava avançar era a de que já não viria. Maria Teresa,
como preferiu ser chamada, chegou ao Centro Escolar Poeta Ruy Belo, assim batizado
em homenagem ao mais ilustre filho da terra, com cerca de uma hora de atraso
que atribuiu ao rebuliço chuvoso da capital, mas deteve-se sem pressas numa
pintura no átrio do edifício que dá as boas vindas a todos os que chegam: “Se
foste criança diz-me a cor do teu país/ Eu te digo que o meu era da cor do
bibe/ e tinha o tamanho de um pau de giz/” Quis saber que boneca era aquela que
ladeava estas “proposições com crianças”. Apresentámos-lhe a Bela, a mascote e
logótipo do Centro de São João da Ribeira e também da Biblioteca Escolar… E
Bela, em homenagem a Belo… foram as crianças que escolheram, houve uma votação
e tudo… Maria Teresa fez um sorriso tão inocente e tão feliz que imediatamente vislumbrámos
a menina que habitava nos seus cerca de setenta anos.
A sessão começou com uma sucinta
descrição dos factos sumários da vida e obra de um dos maiores poetas da
segunda metade do século XX, após o que se iniciou uma tentativa de definição
dessa “arte pouco significativa no nosso tempo” a que chamamos poesia ou género
poético.
Segundo Sophia, “Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real
fica preso.” E António Aleixo explicava: “Os meus versos o que são?/ Devem ser,
se os não confundo,/ pedaços do coração/ que deixo cá neste mundo./” Para Ruy
Belo porém “a poesia é, ao fim e ao cabo, uma aventura da linguagem”. Em
“Prince Caspian” Belo descreve essa aventura como “…uma loucura de
palavras/espectáculo de folhas e poema/”. Para Ruy belo, o poeta é alguém que
“ombro a ombro com os oprimidos”, “empunha a palavra como uma enxada, como uma
arma”, “alguém que procura na linguagem um contorno para o silêncio que há no
vento, no mar, nos campos.” E nesta asserção se conclui que Ruy Belo o foi de
corpo inteiro a partir do momento em que fez da poesia a sua maior razão de
viver e que imolou o seu“coração à palavra”.
“ A muito poucas pessoas que não
eu deve - assim o espero- importar a minha vida particular, coisa que não
gostaria de ter mas que afinal tenho,…” escreveu em tempos Ruy Belo, mas estava
enganado. Para as crianças que queriam ver de perto a mulher que conviveu intimamente
com o Poeta, esse ser assombroso com um pé nas estrelas mas ligado pelo sangue
à terra, o mais importante não era conhecer o percurso académico de um doutor
em direito canónico e licenciado em Filologia Românica. Era ela então a musa
inspiradora de todos os seus versos? Não, o Ruy, para ela era apenas o Ruy,
disse como que justificando aquelas intimidades com o Poeta, teve outras musas,
o que também faz parte da liberdade do poeta, do seu direito a viver outras
paixões ainda que platónicas. As crianças, ainda pouco familiarizadas com o
conceito de sujeito poético, coçaram o nariz. Com a sua candura e paciência
burilada por muitos anos de experiência como Professora, Maria Teresa lá as
convenceu, com palavras simples, de que o poeta é, de facto, um fingidor.
Quais os poemas que lhe dedicou? “Elogio
a Maria Teresa” foi um deles. Qual o seu poema ou poemas favoritos? “Muriel” e
“Tu estás aqui”. Quais as profissões de Ruy Belo? Advogado, Ensaísta, Tradutor,
Chefe de Redação da Revista Rumo, Diretor Literário da Editorial Aster, Professor,
mas sobretudo Poeta! Quantos livros publicou, e quando, e onde, e em verso ou
em prosa? As crianças não baixavam os braços e as perguntas sucediam-se em
catadupa. A tudo Maria Teresa respondia com prazer, com sinceridade, satisfeita
com o retorno que as crianças lhe devolviam. Como é viver sem o Ruy? Perante
esta pergunta Maria Teresa calou-se, passou o olhar pelos livros que cobriam as
estantes da Biblioteca e depois, sempre a sorrir, respondeu que devemos
continuar a viver… e que uma das formas de mitigar as saudades é precisamente
lendo a sua poesia. Infelizmente não houve tempo para saber tudo o que queríamos
saber da vida particular do Ruy e da Teresa.
Os alunos do 4.º E, do 3.º C e do
3.º C en guise de homenagem à viúva
de Ruy Belo preparam-lhe um pequeno recital de poesia onde foram declamados, entre
muitos outros, e sem tropeçar nas letras, “Povoamento”, “Missa de Aniversário”,
“Compreensão da árvore”, “Poema quase apostólico” de Aquele grande rio Eufrates;
e “José o homem dos sonhos”, “E tudo isso era possível”, “O valor do vento” do
livro Homem de Palavra(s).
De tantos versos lavrados no
papel, palavras houve que ficaram longamente a retinir no espaço da Biblioteca:
“morte, deus, folhas, homem, árvore, estações, primavera, palavras, chuva,
cidade, manhã, dia, crianças, infância, coração, pássaros, mar. E o lexema “deus”
muitas vezes com letra pequena, seguindo o desejo de mais um vencido do Catolicismo,
de que “palavra alguma levante a cabeça no meio da frase, por mais carregada de
sagrado que a história no-la tenha feito chegar”.
E solidão, muita solidão. A
solidão do homem no meio da cidade. Sem dúvida a solidão terrível do homem que
tem “o destino da onda anónima morta na praia”, que “vai só” e “não tem ninguém”.
E a morte, sempre a morte, “o pensamento de deixarmos atrás de nós um corpo/
lembranças nossas em alguém vazios os lugares onde estivemos/”. A verdade é a
morte e a morte é a verdade?
Uma outra surpresa reservada para
a convidada foi a ilustração dos poemas recitados a partir da interpretação
pessoal de cada um dos alunos do 4.º E. Maria Teresa voltou-se para trás e fez
uma expressão de surpresa maravilhada como quem acaba de receber um tesouro. E
de repente foi fácil vê-la como o poeta a viu: “… uma graça inesperada/ a surpresa da corça ou
restos dessa raça/ que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres/
expressão sempre surpreendente da surpresa/ mesmo até para quem te conhece tão
bem como eu te conheço/”.
Estávamos todos rendidos a Maria Teresa.
Enquanto visitava as instalações algumas crianças correram atrás dela e
entregaram-lhe poemas pueris onde viúva rimava com uva. Maria Teresa guardou-os
cuidadosamente na carteira e disse: “Já tenho poemas!”! E depois riu com aquele
riso claro que a água imita.
Na visita a São João da Ribeira estava ainda
previsto um périplo pelos locais da infância de Ruy Belo. Junto à antiga escola
primária que o poeta frequentou, e que agora também acolhe casamentos e
batizados, não foi difícil regressar a um passado antes da morte. Assim que
chegou Maria Teresa exclamou para a amiga que a acompanhava, “Vês Manaíra, gira
a borboleta que se atira ao ar!” Certamente referia-se ao famoso poema Vat 69: “da
torre que de sombra cobria a nossa infância:/ rodas no adro-gira a borboleta
que se atira ao ar-/ jogo de berlinde o trinta e um/ pedradas nas cabeças nos
ninhos nas vidraças/”.
Alguns dos versos do poema “ Quero só isso nem
isso eu quero” do livro Toda a Terra
decalcados num singelo painel de azulejo decoravam a fachada do edifício
recuperado. Maria Teresa lamentou o facto de que um dos versos mais longos, que
deveria começar a meio da linha seguinte, tivesse sido assumido como um novo
verso. Um pormenor dirão muitos, mas a prova de que passados mais de trinta e
cinco anos da sua morte, esta mulher “simples recôndita e surpreendente” sobre
quem recaiu o nome do poeta, continua tão presente na sua morte como sempre
esteve na sua vida. “…tu trocaste/a tua alegre vida irrequieta/ no único
infeliz dos teus negócios/ por um poeta pobre velho e feio como eu/” e “Só tu
me acompanhaste súbitos momentos/ quando tudo ruía ao meu redor/ e me sentia só
e no cabo do mundo/” escreveu Ruy Belo em “Elogio de Maria Teresa” no livro Transporte no Tempo.
E com a graça inesperada da corça Maria Teresa
pôs-se a apanhar flores silvestres, ali mesmo junto ao pátio da antiga escola,
para de seguida as ir depositar na cama onde o Poeta dorme agora o seu "vasto
sono horizontal". E de repente a paz: um cemitério embalado por colinas de verde
e pelo silêncio do vento. Nenhuma outra identificação que não a sua própria
poesia - “Trinta dias tem o mês/ e muitas horas o dia/ todo o tempo se lhe ia/em
polir o seu poema/a melhor coisa que fez/ ele próprio coisa feita/ ruy belo
portugalês/ Não seria mau rapaz/ quem tão ao comprido jaz/ruy belo, era uma
vez./- lhe servia de epitáfio.
Extremamente discretos são os mortos, diria Belo.
A proximidade entre a escola e o cemitério
encerrava uma ironia tão óbvia quanto esmagadora. E da sua cama austera que a
terra tem vindo a reclamar para si, ouvidos mais atentos poderiam escutar a voz
desta figura jacente: “Há entre as oliveiras sítio para o sol/ e a brisa da
infância canta rindo nos ramos/entre o cheiro do giz e as canções da escola/
Deus é perto de mim como uma árvore.”.
O périplo culminou na visita à casa de
infância de Ruy Belo, paredes meias com a antiga junta de freguesia de S.João da
Ribeira, numa rua estreita que agora tem o seu nome. Que diria disto o Poeta, ele que que
ironicamente escreveu em “Aquele grande rio Eufrates”: "vamos ao ponto de dar o
nome de mortos às ruas/ como se os mortos não pudessem voltar a morrer/"? E em
tempos também observou em Homem de
Palavra(s): "Oh as casas as casas as casas/as casas nascem vivem e
morrem/mudas testemunhas da vida/…elas morrem com a morte das pessoas/”.
Determinada a contrariar esta sentença, Maria Teresa acalenta o sonho de
transformar esta morada numa Casa-museu que pudesse também acolher escritores e
estudiosos da obra de Ruy Belo, um sonho que dependerá das decisões do
executivo municipal que poderá encontrar nela um polo de atração e
desenvolvimento do próprio concelho.
Uma casa é a coisa mais séria da vida. Nas traseiras Maria Teresa apontou os resquícios da vida desta casa: a velha laranjeira carregada com “essas mesmas laranjas/ que mordemos em tempos ao chegar nas férias do Natal/”; a mina “onde molhámos nossos jovens pés/ e tirámos retratos para morrer mais uma vez/” e a grande figueira onde morreu o cão que teria tido direito a “sepultura com enterro e cruz e muitas flores/”; a adega e a casa do forno onde já não se sentia “o cheiro do jornal”…
Mas nesta quarta-feira sol dourado, a casa
viveu e rangeu sob os nossos pés e na boca das crianças o Poeta regressou à terra
onde um dia nasceu para nela morrer um dia para sempre. E à sua única viúva, o
que poderemos dizer se não talvez, obrigada Maria Teresa, tu estiveste aqui!
Sandra
Pratas e Sousa
Professora
Bibliotecária
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