quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aprender a gostar de ler…com Xico Braga


Mau tempo no canal. Telefono na véspera para o nosso escritor convidado. Queria certificar-me de que sempre viria, apesar da previsão de tempestade e inundações. A ponte 25 de Abril estaria em princípio fechada, mas sim, viria. O fim da tarde do dia 26 de Outubro foi passado em preparativos, a recolher as ilustrações dos textos lidos em todas as salas do Centro Escolar n.º 2 e afixá-los. Os desenhos eram muitos e muito bons. Na impossibilidade de se escolherem os melhores, foram todos para a parede, e como a parede não chegou, continuámos pelas janelas, pelos estores, pelos pilares.
Dia 27 de Outubro à chegada à Biblioteca, e depois de uma noite de ventos agoirentos, os trabalhos estavam todos pelo chão. Receosos de que Xico Braga já não viesse, mas não ousando verbalizar essa suspeita com medo de que a mesma se realizasse, começámos apressadamente a devolver aos sítios originais o fruto de tanto rabisco dedicado. No meio desta azáfama fomos surpreendidos pela figura alta e cambaleante do escritor por que todos os meninos aguardavam, e aqui se inclui a EB1 da Marmeleira que assistia por videoconferência. Cabelo comprido apanhado num quase desfeito rabo de cavalo, barba sal e pimenta e óculos de aro metalizado salpicados de gotas de chuva. E logo hoje que estava com tonturas… não sabia se estava capaz de fazer tonteiras!... Chegou acompanhado de Inga, a amiga Alemã que o acompanha muitas vezes nestes seus périplos pelas escolas e que nunca se cansa de o aplaudir, de observar a reação das crianças ao trabalho do amigo. Quis saber se também tinha origens alemãs. Não, Xico Braga, como o próprio diz jocosamente, é apenas um Ribatejano nascido em Faro. Nascer aí foi um acaso. Foi no Ribatejo onde recolheu os cheiros, as paisagens e os trejeitos das gentes que povoam as suas memórias de infância. Depois centrou-se nos desenhos dos miúdos, uma profusão tão intensa de imagens de galinhas poideiras, de CD-Roms que só giram às vezes, sombras assustadas, fantásticos pinheiros voadores, caramelos sonhadores, coelhos com patas que adivinham o tempo, bombas de gasolina encantadas, que já não sabia indicar a que histórias é que os desenhos se referiam. Mostrou-se surpreendido com a volta que alguns meninos tinham dado às estórias, com os desfechos diferentes que alguns lhes deram, com a inocência que lhes transmitiram. “É como a estória do meu sorriso. Quando a escrevi nunca pensei que viesse a soar assim tão triste.” “Tão triste que os meninos do 1.º A não querem que se vá embora sem lhes mostrar que já sabe sorrir!” retorqui eu. Deixou-se escorregar para o cadeirão laranja da hora dos contos e balbuciou: “Nunca pensei… tem sido uma surpresa… as coisas que me têm feito nas escolas…” assim com a humildade de quem não esperava uma tão grande surpresa a coroar esta fase madura da vida.
Quando as turmas começaram a encher o espaço acanhado da Biblioteca, depressa o seu espírito se animou e o seu corpo se ergueu numa verticalidade inesperada, assim como que levantado do chão, como diria um dos seus escritores prediletos. Uma postura que reflete trinta e mais anos de ensino deste Professor reformado que se fartou de ver certas coisas que agora acontecem nas escolas. De resto, impressiona-o a estupidez que impera neste país. “Agora sou eu que fico com a melhor parte” disse num largo sorriso de satisfação e com ar de avô traquinas que agora se entretém a deseducar os netos.
Xico com X?!!!! Indignaram-se os miúdos. “Claro, se me chamares Xico com Ch eu não respondo!”. E de repente, no meio deste “one man show”, que misturou leitura sentida de textos, imitações de cães a alçar a pata para fazer chichi e meninos a deitar a língua de fora a levarem os miúdos às lágrimas de tanto rir, mini-atelier de escrita criativa, críticas à nossa televisão bigbrotheriana, reflexões maturadas sobre a maneira como os livros moldam a nossa existência e de como é importante ler para aprendermos a pensar, já não era nem velho nem novo, apenas o menino que sonhava ser escritor, montado num cavalo feito de uma cana do canavial da ribeira a brincar aos cavaleiros da távola redonda com os seus companheiros nas ruas e campos da Azambuja.
Por culpa do pecado da preguiça, esse sonho de menino foi sendo sempre adiado para o amanhã e o amanhã demorou mais de quarenta anos a chegar. Um problema no coração e a consciência da mortalidade própria fizeram-lhe ver que estava mais do que na hora de o cumprir. Começou então a escrever estórias. “Isso está mal! Não se escreve assim” reclama um petiz. Xico Braga explicou pacientemente que é como um escritor Brasileiro cujo nome já não recorda. As histórias deixa-as para os escritores importantes, ele apenas escreve estórias. Se fosse desses, dos grandes, e se fosse capaz disso, teria escrito a História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar de Luís Spúlveda. Se tivesse escrito essa maravilhosa história não precisaria de escrever mais nada. Também, se pudesse recriaria a aldeia de Macondo de Garcia Marquez, as ruas por onde passam escondidos os amantes perseguidos de A invenção do amor e outros poemas de Daniel Filipe. E dizendo isto, aproveitou para ler a estória “O meu livro favorito” e que nesse dia era A sombra dos momentos felizes do amigo Carlos Amaral. É difícil saber se realmente será esse o seu preferido, já há muito tempo que não pensa nos livros dessa maneira. Mas lembra-se bem do seu desejo de aventuras quando em miúdo alegremente esperava pela carrinha da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Mas pensando melhor, e recuperando das muitas recordações das coisas belas que leu pela mão de tantos escritores, rematou que talvez o seu preferido fosse este último, o que anda a escrever agora, e em que fala sobre coisas vulgares.
As suas histórias são verídicas? “Sim, é tudo verdade nas minhas estórias, até as mentiras”. No fim da primeira sessão, a caminho da Biblioteca da Fernando Casimiro Pereira da Silva, vinha incomodado, se calhar não tinha explicado bem esta ideia. Acho que ele queria dizer que, a partir do momento em que os acontecimentos são remexidos na imaginação do escritor e depois filtrados pela sua pena, as coisas que vive misturam-se com que as que imagina, tornando-se na verdade que ele quer transmitir. Mas agora que penso nisso também já não sei se realmente percebi o que ele queria dizer.
Gosta de escrever para adultos ou para crianças? “Gosto de escrever.” Qual o seu primeiro êxito? “A primeira escola onde fui!”. No fim da apresentação da manhã, um dos alunos que estivera presente, regressou à Biblioteca, e sem um ai nem um ui depositou-lhe nas mãos um papel que dizia assim: “Xico Braga, o maior escritor de sempre!” Xico Braga voltou a sentar-se, emudecido a morder o lábio superior para dentro. Antes de se despedir da equipa da Biblioteca voltou a pegar no papel e a frisar: “Se contribuir de alguma forma para que eles aprendam a gostar de ler, já é gratificante.”
Xico Braga pode nem ser o melhor escritor do mundo, mas neste dia em concreto, para estes miúdos que gritaram “Conta a do Piolho, conta a do Piolho”, que riram com a hortelã que se vinha meter em estórias para onde não era chamada, ele foi sem dúvida o melhor do mundo!
Os objetivos definidos para o Mês internacional das Bibliotecas Escolares terão sido cumpridos? Quem saberá? A única coisa que espero, sinceramente, é que amanhã ou depois os miúdos venham à Biblioteca à procura do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro de que o escritor que esteve cá falou; que um dia já adultos se emocionem a ler Cem anos de Solidão; e que ainda mais tarde, quando já forem muito velhinhos, talvez em frente da Baía do Seixal, chorem a ler aquele poema do Fernando Pessoa que fala do dia em que antigamente festejavam o nosso aniversário.

Sem comentários:

Enviar um comentário